“Olá
amiga! Lembra que havia lhe falado do terreiro de umbanda que freqüentei
durante um ano a exatamente dois anos atrás e da vontade de ir lá rever o pessoal? Pois hoje tirei o dia para isso. Na parte da manhã minha mãe foi numa consulta da minha avó pegar uma nova guia da receita de seu remédio de dormir. Com isso não pude sair de casa cedo, mas assim que almocei, eu me arrumei e saí para cumprir meu objetivo. Fui e voltei caminhando, devo ter andado uns doze quilômetros ao todo e essa ficou sendo minha ginástica do dia. Primeiro passei na Catedral Santa Teresinha a fim de me acalmar e rezar um pouco já que adoro o ambiente acolhedor, calmo e reconfortante das igrejas. Depois passei na biblioteca a fim de trocar meus livros e segui det
erminada e confiante ao destino final. Eu estava tão nervosa que
tive dor de estomago o caminho todo e só depois de ter concluído o pretendido é que o mal estar passou. Eu não podia imaginar como seria recebida por lá, se iam me ‘atirar pedras’ por tê-los deixado sem mais nem menos, se iam me abrir os braços saudosos, se iam me encher de perguntas desagradáveis, etc. Como lhe contei, quando saí de lá eu não avisei e nem dei justificativas a ninguém para n
ão ter que escutar as pessoas tentando me convencer do contrário. Não gosto de receber conselhos quando não peço, pois tenho consciência e responsabilidade de minhas escolhas e atitudes, além do que, só dou justificativa quando estou disposta para tal.
A princípio minha idéia era de falar apenas com a mãe “Iara” e sair antes do pessoal chegar, mas aconteceu exatamente o oposto. A mãe “Iara” sempre foi à pessoa que mais gostei por lá e trabalhava com ela cuidando das almas. Ao chegar lá estava apenas a “Leny” cuidando de tudo. Ela é uma pessoa muito humilde da qual sempre gostei tam
bém. Depois de cumprimentá-la eu perguntei pela mãe “Iara” e ela me chamou para dentro dizendo que logo a mesma chegaria, mas foi chegando todo mundo menos a mãe “Iara”. Não disfarcei que minha saudade e visita tinha um foco principal: a mãe “Iara”. Tentei ser o mais natural e autêntica possível. A terceira pessoa que chegou foi o pai “Jack”, um homem marmanjo, mas com jeito de moleque sapeca que também sempre gostei e que me tratou tão bem quanto à “
Leny”, deixando claro que fora um prazer me rever depois de tanto tempo. Respondi que o prazer fora meu e nisso não neguei sinceridade. Na seqüência chegou a minha madrinha mãe “Zi”. Ela tentou me indagar o por quê de eu ter sumido e repeti o que falara para a “Leny” sobre minhas viagens para Ribeirão Preto, Campinas, São Paulo, os estudos para concurso e a adoção da minha sobrinha. Até então eu estava escondendo boa parte da verdade.
Depois chegou um casal desconhecido e a irmã do “Paparik”, a qual me deu um forte abraço e demonstrou suas saudades. Ela foi uma das pessoas que nunca me escondeu a sinceridade de sua opinião ao dizer que lidar com umbanda não é nada agradável, que pouco compensa, que é um karma pesado, etc. Quando ela dizia para eu não me envolver com muita pressa eu não compreendia qual era de fato a intenção dela, e não me esquivava de fazer tudo o que podia fazer, pois não tinha receios, queria aprender tudo na prática e meu senso de responsabilidade falava mais alto, porém agora percebo que sua postura era bastante amiga. Depois apareceu o meu padrinho pai “Zé” que me cumprimentou inicialmente se
m muito rodeio, mesmo deixando nítida a sua vontade de me interrogar. Mais pessoas foi chegando, inclusive a mãe “Chefe” e seu esposo. Foi muito válido ter estado lá, pois durante minha permanência, em verdade na espera de quem eu mais queria encontrar que era a mãe “Iara”, não vi nenhuma pessoa que ao chegar não tecesse alguma reclamação sobre alguma coisa dali de dentro mesmo. O clima é o mesmo desde a época em que lá eu freqüentava e trabalhava. Houv
e um momento em que a “Leny” me disse que eu fazia certo em não querer aquilo para a minha vida. Ela aconselhou-me a rezar, colocar vela para o meu anjo de guarda, fazer campanha do quilo conforme lhe contei que estava fazendo e ficar apenas nisso, pois, segundo suas palavras (e nunca pensei que fosse escutar isso de uma pessoa tão resignada como ela), o trabalho na umbanda é muito duro, pesado e não vale a pena. Comentei que existem vários pontos que eu não concordo e não cabe a minha pessoa querer mudar algo que é seguido culturalmente há milênios. A conversa ficou nisso e senti que ela não quis dizer mais nada, apenas tecera tal comentário por não conseguir guardar uma insatisfação que, por uma força maior da qual não sei explicar, re-aflorou nela naquele momento. Continuei na espera até que, já cansada de lá estar, eu resolvi dar jeito de vir embora. Pedi a “Leny” para dar um beijo na mãe “Iara” por mim e disse que tentaria voltar outro dia.
Ao passar no terreiro para despedir-me à mãe “Zi” quis saber se eu havia casado e por isso desaparecera. Respondi que, tirando o período de viagens, minha vida em nada mudara, que eu não estava trabalhando e nem namorando. Ela falou o mesmo de sempre, que sou bonita, inteligente e que preciso trabalhar. Eu lhe disse que isso não é o suficiente, pois a única justificativa é o querer. Ela tentou argumentar e voltei a lhe responder o mesmo em outras palavras deixando claro que eu não sinto falta de trabalhar, nem de namorar, que estou bem com minha vida, que sou tranqüila com o que tenho e que para mim tudo sempre está bom pois assim eu penso e desejo sentir, que sou daquelas que acredita que se tiver de ser será e não me importo de correr atrás de ilusões e tal. Ela dizia o contrário e eu batia na mesma tecla. Que ousadia a minha! Mas confesso que me irrita as pessoas não acreditarem no que digo como se fosse algo impossível de ser real e ficarem argumentando contra meus próprios sentimentos. Ela comentou que ficara preocupada pensando que alguém tivera me feito alguma coisa que eu não houvesse gostado para ter saído do terreiro de repente sem dizer nada a ninguém. Disse que não, que nada me acontecera e que eu tivera os meus motivos. Eu ainda estava na postura apenas defensiva e reservada.
Nisso o pai “Zé” chegou no terreiro e repetiu a tão jocosa pergunta querendo saber se eu tinha casado. Respondi que não. Ele novamente fez a mesma pergunta básica da hora em que me cumprimentara tentando saber se eu estava bem. Respondi que sim, porém, quanto mais eu respondia que estava bem, menos eles conseguiam acreditam. Eu sentia neles o ar da seguinte dúvida: como ela pode estar bem se não está trabalhando e nem namorando? Claro que isso para mim é importante e durante anos me reduzi a nada por não ter um emprego ou um namorado, mas hoje penso e sinto que isso não é o principal da minha vida. Entretanto, nada do que eu dissesse estaria ao alcance da compreensão do pai “Zé” e preferi ficar calada. Eu não estava ali para me portar como a sabe tudo, pois cada aprendizado é pessoal e só serve para seu dono.
Eu aprendi a virar o jogo: reduzi emprego e namoro ao nada e isso me ampliou perante mim mesma. Aprendi a valorizar o que me faz bem ao invés de sofrer pelo contrário. Conferi que sou recompensada pela força bravia de não me atemorizar pelo que não desejo, nem me culpar ou me martirizar ao receber crítica alheia. Sou feliz e realizada com muitas coisas que faço e das quais não recebo remuneração nenhuma além da satisfação interna que me invade a alma e alimenta meu ser de plenitude. Hoje não há critica que me abale e nem dinheiro que compre meu bem-estar de ser responsável por mim mesma, pelas minhas escolhas e atitudes. E se eu estiver errada em minha postura, não serão os outros que me mostrarão tal erro apontando com o dedo, mas sim a minha própria vida. Ninguém poderá aceitar, compreender e assumir meus equívocos. Serei eu a retomar rumo novo como tantas vezes o fiz tornando-me heroína de mim mesma. Minha serenidade atual consiste em valorizar o que pessoalmente gosto de fazer e não em ficar presa fazendo aquilo cujo resultado possa ser mais valorizado socialmente. O valor do que fazemos está no sentimento que isso gera em nós enquanto o fazemos e não no resultado final em si. Eu sofri para descobrir isso, mas hoje ninguém tira essa certeza de mim que tanto me pacifica interiormente. E sei que só me entenderá quem já aprendeu o mesmo, pois caso contrário, tudo isso soará apenas como uma absurdidade..
Quando fui me despedir já cansada daquela conversa, o pai “Zé” começou a me indagar o que eu estava fazendo. Eu respondia que estava tranqüila levando a vida, fazendo um monte de coisas amenas, mas isso não era uma resposta suficiente e não sei quantas vezes ele me perguntou o que eu estava fazendo de formas indiretas do tipo: mas você está estudando? Mas você está indo noutra religião? Mas você fez pós-graduação? Mas você está procurando emprego? Etc. Quanto mais eu respondia que não, mais ele parecia curioso e incrédulo comigo. Por que as pessoas acham que para estar bem ou resolvida na vida é preciso estar fazendo algo de preferência ligado à carreira ou ao dinheiro? Por que as pessoas acham que para ter paz e estar com Deus é preciso ter religião ou freqüentar algum local religioso qualquer? Eu só não estava bem e não tinha paz quando acreditava que careira, estabilidade financeira e religião era o comando da vida. Mas ainda bem que aprendi que quem comanda a minha vida sou eu e não aquilo que o mundo impõe como sendo primordial. As pessoas em geral vêem o progresso ligado a algo externo, mas para mim, pelo sofrimento e aprendizado que colhi com a própria vida, a evolução se baseia unicamente na maturidade do nosso Eu interior e isso se expande naturalmente para fora se refletindo em tudo o mais. Se a evolução da nossa maturidade interior não estiver à altura de nossos atos exteriores, de nada eles nos valem, serão puramente em vão. É por isso que tantas pessoas, como diz o dito popular, ‘nadam para m
orrer na beira da praia’, passam a vida ‘nadando contra a maré’, ‘dando murro em ponta de faca’. E há quem faça isso se gabando! Ainda bem que a escola da vida é mestra incomparável a nos moldar dia após dia.
Já injuriada falei perante o pai “Zé” e a mãe “Zi” o mesmo que falara para a “Leny” sobre gostar da umbanda mas não aprovar vários detalhes dos quais não me cabe querer mudar. Ele disse que é impossível aprovar tudo, mas que é preciso aceitar enquanto a mudança não acontece e brigar por essa mudança. Eu respeito à opinião das pessoas, principalmente das mais velhas e, por isso, preferi ficar calada. Caso contrário eu teria dito que não compro briga quando tenho escolha e posso trilhar outros caminhos. A mãe “Zi” perguntou se eu não pretendia voltar e fui clara ao dizer que não; cá para mim, ao menos enquanto assim eu estiver pensando. Ela quis saber o por quê. Respondi que não sabia se va
lia à pena fazer tanto por tão pouco. Ela disse que tudo vale a pena e respondi que não tinha certeza disso. Como já escrevi em linha acima, para mim só vale à pena aquilo que me completa o coração, mas não quis argumentar. Pai “Zé” continuou a conversa dizendo que só está ali pois acha que sua missão ainda não acabou, que quem meche com umbanda tem muita dívida (pensei comigo: ele se vê como missionário ou devedor?), pois caso contrário colocaria uma bíblia de baixo do braço, um terno com gravata e iria para uma igreja pregar, uma vez que aí ele seria mais bem visto. Sua analogia soou-me pé
ssima. Respondi de imediato que o valor das nossas atitudes não está na aparência social, mas sim no que nosso coração sente. Ele concordou se defendendo como se o que quisesse dizer fosse exatamente isso. Sabe quando alguém te fala uma coisa e o corpo parece demonstrar outra? Foi o que eu senti no ambiente daquela conversa. Ele caiu em contradição e me deu a sensação de que estava querendo me convencer de algo que ele não consegue convencer nem a si próprio. Não sei se já percebeu isso, mas as pessoas tentam aconselhar ou convencer as outras projetando nelas os seus próprios dilemas ou desejos. Nada do que ele falou justifica a minha necessidade de trabalhar num terreiro, mas justifica sim o fato dele lá ainda estar, mesmo que visivelmente a contragosto. Isso ficou tão nítido para mim! Eu era a minoria, mas senti que minha razão expressa naquele ambiente foi maior do que todas as argumentações.
Enquanto voltava para casa eu dizia a mim mesma: ‘De modo algum me arrepend
o de ter deixado a umbanda e isso não quer dizer que, um dia, eu não vá voltar a lidar com ela novamente por vontade própria’. Quando tomamos coragem para desamarrar os nós que existem dentro de nós, nas nossas crenças, nos livramos de todas as amarras externas, somos livres e nada nos prende. Eu sou o tipo de pessoa que não consigo fazer nada por obrigação. Eu só faço aquilo que me pede o coração. Não faço nada por achar que é minha missão ou karma. De que adianta cumprir missão estando insatisfeito? Eu comprovei claramente que todas as pessoas lá dentro estão ligadas ao compromisso religioso por acharem que devem, por sentirem-se presas àquilo, talvez por medo ou sei lá por qual motivo. Enquanto trabalhei lá ouvia muitas reclamações e isso continua, talvez até pior. A atividade parece um peso e as pessoas cumprem-n
a como se não tivessem opção. Eu nunca faltei um dia de trabalho enquanto freqüentava, mas também nunca deixei de fazê-lo com o coração presente, sentindo gratidão e alegria. O dia que tal sentimento começou a ser abalado eu apenas sumi e hoje percebo o quanto estou certa, o quanto estou vencendo a minhas próprias amaras, bloqueios, medos e crenças destorcidas. Estou rompendo comigo mesma e sendo uma fênix que alcança vôos. Sinto-me livre, capaz e forte. Não há missão ou karma que passe por cima do meu livre-arbítrio, que atropele a minha ignorância, que massacre meus sentimentos, que anule a força do que me comanda: meu sábio coração, o membro que me intui sempre a viver de bem comigo mesma. Pois bem, de momento é isso o que tenho a vos escrever e desde já te deixo livre para tecer qualquer comentário. Se eu estou te contando tudo isso é por valorizar a sua opinião e precisar dela, seja contra ou a favor. Um abraço carinhoso e até breve”.